Em 15 de outubro de 2001, um final de domingo eu estava completamente bêbado depois de uma garrafa de cachaça que havia ingerido na tarde. Separado e pai de dois meninos que passavam fim de semana comigo e que testemunhavam minhas constantes e contumazes bebedeiras que sempre extrapolavam o que se chama de “beber socialmente”. Minha irmã mais velha me chama pra uma conversa e fala daquela coisa deprimente dos meninos sempre verem o pai deles passando da conta na bebida. Era mais um dos muitos sermões que o povo de casa costumava dar, na vã tentativa de me afastar dos excessos com o álcool. Desta vez ela me oferece uma consulta com um psiquiatra especializado em dependência química, o qual tinha feito com sucesso o tratamento de um colega de trabalho dela vítima do alcoolismo. Eu relutei, mas, na terça feira seguinte, lá estava eu em companhia do Dr. Jorge Arruda para a consulta que minha irmã agendou e pagou. Ele, com muito tato, fez perguntas acerca da minha relação com o álcool, coisas como a quantidade que ingeria, a modalidade de álcool, a freqüências dos pileques, as motivações para beber, a existência de parentes alcoólatras, o tipo de ambiente social em que eu vivia, etc. O médico atestou meu perfil de compulsivo, não era um julgamento moral, mas uma constatação do meu psiquismo que determinava esse comportamento anômalo de beber desbragadamente, fora de controle, com todos os comportamentos anti sociais que os pinguços em geral apresentam. Falou que o que determinava esse quadro clínico era uma conjunção de fatores genéticos, comportamentais e sócio culturais, já que a herança genética favorecia mas não determinava que alguém se tornasse alcoólatra. Eu sou filho e neto de alcoólatras, fui educado em ambiente em que o ato de ingerir bebidas alcoólicas era reforçado pelo grupo de referência, como afirmação da sociabilidade e a masculinidade do sujeito. De fato, aluno de escola militar desde os 12 anos, passando mais um ano no CPOR do Recife, meus pares sempre bebiam pra comemorar fosse lá o que houvesse: festas, torneios esportivos, etc. Aprendi a beber com cerca de 17 anos, no ano em que ganhei o torneio de xadrez dos jogos escolares, foi meu primeiro pileque, cheguei em casa com a medalha de ouro, o troféu e de cara cheia. Depois disso, num crescente, passei a viver como boêmio, minhas vivências musicais favoreceram a presença do álcool em minha vida. Dos 25 anos em diante, tenho certeza que passei a ingerir bebida alcoólica bem além dos limites do beber socialmente. O médico deu-me duas opções: continuar bebendo e adquirir alguma doença associada ao consumo excessivo e morrer disso, ou redimensionar minha vida, afastando completa e totalmente o álcool de minha vida. O ser humano com perfil de compulsivo quando deixa de consumir seu objeto de compulsão, seja lá qual droga, não consegue segurar o impulso de consumir, uma vez consumindo, toda a compulsão volta e a pessoa não mais controla esse impulso e volta com toda carga. Ou seja, não existe essa de deixar por um tempo, consumir menos, compulsivo simplesmente não controla sua vontade uma vez consumindo álcool. É verdadeira aquela história de evitar o famoso primeiro gole, nosso cérebro funciona como um livro aberto no qual nós escrevemos nele. Quando paramos de beber o livro é fechado, podemos passar anos a fio sem beber, uma vez ingerido o primeiro gole, o livro é reaberto na página em que foi fechado e a história continua de onde tinha parado como se não houvesse nenhum lapso de tempo. Passei a tomar medicamentos que ajudavam a tirar a compulsão e que redimensionavam o funcionamento do metabolismo basal do sistema nervoso. Duas drogas de tarja preta e muito fortes, que passaram a me deixar em marcha lenta, sonolento por algum tempo. Eu tocava num boteco no centro do Recife e passei a me apresentar neste ambiente boêmio tomando água mineral e refrigerantes, não deixei de andar nos bares do Recife Antigo para onde me dirigia com freqüência, em companhia dos meus amigos que sempre bebem bastante. Ou seja, não me isolei como eremita dos ambientes boêmios, enfrentei o desejo de beber de frente, não mudei de ambiente social, enfrentei o leão dentro da sua jaula. Causei variadas reações nos antigos parceiros de bebida, alguns ficaram indiferentes, outros fazendo chacota. Um outro grupo querendo me trazer de volta ao vício na crença de que eu (e eles também) não éramos doentes, e que nada havia demais em tomar uma cervejinha. Fui até ofendido por um deles metido a profeta e sábio que me disse literalmente: “ ..Allan Sales, vocês está perdendo o seu caráter..” um trapo humano que é escravo até hoje do álcool e que me dizia que não concebia sua vida sem o álcool. A maior luta pra mim não foi a falta da bebida em si, porém todo ritual em torno do álcool, a maioria de meus contatos sociais é de pessoas que bebem em variados graus, fiquei como peixe fora d’água inicialmente, aos poucos fui readaptando minha presença no meio social que nunca abandonei por conta da abstinência. Hoje acordo bem mais cedo do que em tempos em vivia entre dois estados de consciência: bêbado e de ressaca. Tenho outra disposição física e mental, embora muitos “artistas” me perguntem como é que eu consigo compor música e escrever poesia sem nenhum “estímulo”, assim como eu consigo curtir os eventos sem o auxílio externo de algum “estimulante”. Sem moralismos baratos e sem nenhuma conversão religiosa fajuta, vivo assim fora do vício e conto cada ano mês e dia de cara limpa: 5 anos, dois meses e 23 dias sem beber. Acho que essa experiência de vida e esse testemunho algo que pode vir a ajudar alguém que esteja hoje no mesmo inferno em que vivi por 21 anos de minha vida.
CORDEL: CONSTRUINDO OUTRO DESTINO
Autor: Allan Sales
(1)
Vou contar uma história
Cem por cento verdadeira
Eu então jovem mancebo
De juventude fagueira
Iniciei meu tormento
Pois neste triste momento
Eu entrei na bebedeira
(2)
Era só por brincadeira
Dos amigos camaradas
Eu tocava violão
Para animar as noitadas
Eram alegres pelejas
Vinhos conhaques cervejas
Nas farras tão animadas
(3)
Eram tantas as paradas
E ali bem postado
Pois só sabia curtir
Se estivesse embriagado
Tal como meu pai bebia
Na mesma estrada eu ia
A tornar-me um viciado
(4)
Sem perceber-me logrado
Embarquei nesta canoa
Era alegre a boemia
Conhecer tanta pessoa
Encher a cara por nada
Curtir a turma animada
Para mim ô coisa tão boa
(5)
Mas eu ficava à toa
Fazendo minhas besteiras
Pois o bebum perde o rumo
E também as estribeiras
Discute e compra briga
Pois o álcool o instiga
A fazer tantas bobeiras
(6)
E nas farras corriqueiras
Sem saber-me compulsivo
Geneticamente propenso
A um vício corrosivo
Fui beber além da conta
A cuca pra lá de tonta
Ficava brabo e explosivo
(7)
Hoje isso eu não vivo
Procurei um tratamento
Aos 41 de idade
E vinte de sofrimento
Minha irmã me apoiou
Meu filho me implorou
Deixar o vício nojento
(8)
E assim neste intento
Fui falar com o doutor
Jorge meu psiquiatra
Que foi esclarecedor
Mostrou-me o quadro real
Deste vício bestial
Tormento de um bebedor
(9)
Meu pai foi um sofredor
Por causa do alcoolismo
Assim como avô paterno
Caiu também neste abismo
Que altera a consciência
Provoca queda e demência
E falo sem moralismo
(10)
Beber afirma o machismo
É um ato cultural
Mostrar que é cabra macho
Eu fui assim afinal
Com genética herança
Fui fundo nesta lambança
Mas nela pus um final
(11)
A luta foi crucial
Por causa do ambiente
Altamente permissivo
Aonde eu era vivente
Amigos todos farristas
Biriteiros ativistas
Cachaceiros no batente
(12)
Mesmo assim fui em frente
Da parada não corri
Rompendo com o passado
Que até então eu vivi
Tomar um outra atitude
Cuidar melhor da saúde
Opção que escolhi
(13)
E assim como parti
Em busca de uma mudança
Muita gente me tentou
Chamou de volta pra dança
Oferecendo bebida
Desgraça da minha vida
Que hoje não me alcança
(14)
A luta nunca se cansa
É permanente e diária
Ser sóbrio a cada dia
Numa luta temerária
Muita gente faz chacota
Muitos chegam com lorota
Incredulidade vária
(15)
A coragem necessária
Até hoje eu a tenho
Vejo a alegria dos filhos
Vendo meu sóbrio empenho
Melhorei a minha vida
Que hoje melhor é vivida
Com um melhor desempenho
(16)
Outro caminho eu desenho
Mas permaneço atento
Pois as tentações do mundo
Tem variado fomento
Ainda estou nas noitadas
Violas enluaradas
Meu ofício por intento
(17)
Permanecendo atento
Vigilante a cada dia
Consciente que o vício
Fez minha vida vazia
Hoje traço outro caminho
A poesia e meu pinho
São a minha companhia
(18)
Faço outra cantoria
O novo eu determino
Prosseguindo firme e forte
O que aprendi ensino
A bebida pus de lado
Sóbrio não embriagado
Construindo outro destino
Allan Sales, 47 anos: 6 anos, três meses 27 dias sem beber
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