terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Aprendiz




Comecei a tocar violão quase que por acaso, sem grandes expectativas no ano de 1977 quando meu grande amigo Fernando Arthur ensinou-se o três primeiros acordes no instrumento, nos tempos de férias que passava em Campina Grande-PB. De volta ao Recife, uma tia cedeu pra mim seu velho violão Giannini que meu avô lhe dera por ocasião dos seus quinze anos de vida. O velho pinho em estado de conservação bem precário foi de grande serventia naqueles primeiros passos. Perto de casa havia uma oficina mecânica na qual trabalhava um amigo bem mais velho chamado Zeca, um jovem rapaz negro migrante de Vitória de Santo Antão que tocava violão. Foi meu segundo mestre, tocava as gaiatices de Genival Lacerda, as coisas mais simples de Roberto Carlos, as esquisitices de Sidney Magal, muito brega de Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, baiões de Gonzaga, Benito de Paula, Agepê. Ou seja, um repertório bem popular dos sucessos de rádio daqueles tempos. Paralelo a isso, eu comprava tudo quanto era revistinha de cifra que saía nas bancas de revista do Recife.
Ano seguinte, em Campina Grande, na casa dos meus amigos da família Nogueira, seu filho mais velho pôs pra tocar na vitrola um disco do MPB-4 tocando Roda Viva de Chico Buarque de Holanda, entre outras pérolas de uma antologia desse maravilhoso grupo musical. Além disso, me fez ouvir pela primeira vez João Gilberto, tocando aquele violão com acordes que meu ouvido jamais tinha ouvido e que eu não sabia como montar no braço do violão. Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra e toda trupe da bossa nova passei a conhecer nesse tempo. Fiquei apaixonado por bossa nova, mas não tinha a menor noção de como poderia tocar aquelas “aranhas”, como meus amigos chamavam aquelas posições esdrúxulas no braço do violão. Os dedos não chegavam, doía pra cacete abrir os dedos pra armar aqueles acordes. A batida então, aquela coisa sinistra e sincopada que eu amava ouvir e que não conseguia reproduzir aquele pulso musical, engraçado que o samba tradicional eu tocava com grande eficiência e sem problemas, mas aquela batida que João Gilberto criou era um pesadelo.
De volta ao Recife, conheci um cabra chamado Moisés, amigo dos meus amigos que jogavam xadrez que tocava divinamente, foi uma surpresa quando ouvi ele tocar e cantar com voz super afinada Garota de Ipanema com tudo que tinha direito. Colei no Moisés, aprendi todos os acordes daquela canção mas não conseguia pulsar na batida certa. Ficava horas a fio tentando, muitas vezes me trancando no banheiro de casa depois que todos dormiam, pois era o único lugar da casa aonde tocava sem acordar o povo da família que tinha um sono pra lá de leve. Numa dessas madrugadas, entrei no banheiro, sentei no bidê e comecei a dedilhar a seqüência harmônica da canção, de repente, quase como milagre, encaixo finalmente, depois de mais dois meses de tentativas a batida de bossa nova. Fiquei a noite toda tocando em êxtase Garota de Ipanema, até que minha mãe acordou para ir ao banheiro lá pelas quatro da manhã e me pegou tocando violão. Levei um baita esporro e fui, a contragosto, me deitar.
De posse dessa nova ferramenta rítmica, passei a tocar todo repertório de bossa nova e aprender músicas de compositores da elite estética da MPB, foi um achado, passei a pesquisar tudo que me caía nas mãos. Em 1979, na Vila do IPSEP, passei a colar noutro mestre de violão que a vida pôs em minha frente, chamava-se Heráclides Castro, vulgo Dicinho, exímio baixista e membro da banda do emergente astro da MPB Alceu Valença. Ele me viu tocando numa festinha “Mulheres de Atenas” do Chico. Disse pra mim: passa lá em casa para eu te passar uns acordes. Fui lá e passei a ver coisas que jamais vi na minha vida, ele simplesmente entortava as músicas que eu mostrava pra ele, coisas que aprendi nas revistas de músicas cifradas. Ele colocava acordes estranhíssimos, lindos e expressivos demais da conta, uma magia pra meus ouvidos, endoidei minha cabeça, aquele maluco ali mostrou pra mim como era possível mexer com acordes, algo além de simplesmente acompanhar, era harmonizar, buscar as possibilidades de seqüências de acordes. Abri minha cabeça graças a essa luz que Dicinho pôs em minhas mãos, pouco tempo depois, pude entender teoricamente aquilo que meu primeiro grande mestre fazia com tanto talento. Foi lendo o MANUAL DE HARMONIA de Paulinho Nogueira que entendi como eram formados os acordes, como eram criadas as dissonâncias, assim como os encadeamentos de acordes que agregaram um enorme valor ao violão que eu tocava naqueles dias.

Em 1984 eu entrei na primeira escola de música erudita em minha vida, meu professor, Alexandre Bananinha me pede pra mostrar o que eu sabia fazer, já que ele sacou que eu já sabia tocar música popular. Toquei e cantei João e Maria (de Sivuca e Chico) com todos os acordes e dentro do ritmo da canção, ele adorou, mas disse, pra tocar popular você já está pronto, mas tocar violão erudito a história é outra. Tocou pra mim uma peça de J.S. Bach, a famosa Bourrée, ouvi aquela peça abestalhado e pensando no dia em que poderia algo parecido com aquilo. Ele passou a me cobrar estudos de escalas para condicionar minha técnica com o instrumento num nível que me permitisse executar peças do repertório erudito. Fiquei três meses somente nessas escalas que arrebentavam meus dedos, deixavam meus tendões em pandarecos com dores musculares pelo excesso de empenho. Fiquei somente nessas escalas sem tocar absolutamente nada, nem música cantada, muito menos música instrumental. Num dia de domingo, eu acordo bem cedo pra fazer minhas escalas, de repente, penso em tentar tocar “Abismo de Rosas”, de Américo Jacomino(Canhoto) que foi imortalizada por Dilermando Reis. Meus dedos voaram no braço do violão, eu não acreditava que estava tocando aquela linda valsa com meus dedos obedecendo ao meu cérebro. Foi um arrebatamento, uma felicidade incrível, na seqüência, voltei pra um arranjo de Asa Branca, fiquei mais louco ainda quando percebi que tinha dedos pra tocar coisas bem mais além das que antes fazia antes de iniciar meu treinamento com o professor Alexandre Bananinha. Passei dois dias nesse arrebatamento e feliz em me sentir musicista e capaz de brincar com tanta felicidade com o braço do violão.
Em 1985 fui aluno do professor Newton Banks no Centro de Educação Musical de Olinda, outro grande professor de violão erudito que abriu caminhos em minha mente para que eu melhorasse minha performance. Finalmente, em 1989, Esmael Feijó, meu derradeiro grande mestre de violão, tocava Villa Lobos como ninguém, passou pra mim o melhor conhecimento que tenho hoje de violão, uma alma musical iluminada que tinha uma abordagem afetuosa com seus alunos. Esmael me apresentava aos demais colegas da sua ESCOLA ALTERNATIVA DE MÚSICA DO RECIFE como compositor, dava o maior apoio às coisas de música popular que eu mostrava pra ele. Em 1990, estreei meu primeiro show de palco como compositor, cantor e violonista, chamei de CANTORIA URBANA, na platéia estavam lá, pra minha felicidade, meu primeiro mestre Fernando Artur, amigo de infância e parceiro musical, Newton Banks e Esmael, junto com vários colegas meus da escola de música.
Sou feliz demais em meu trabalho musical e agradeço à vida por ter posto em meu caminho tantos anjos da guarda que me ajudaram a desabrochar as rosas musicais que me surgiram pela frente.



(1)
Pixinguinha foi um mestre insuperável
Gonzagão sertanejo e menestrel
Cada um exercendo seu papel
Na canção cada um foi tão louvável
Toda alma brasileira foi palpável
Nas canções desses mestres ancestrais
Nos caminhos nas escalas magistrais
Turbilhão de belezas foi criado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(2)
Bela Vila Isabel com Noel Rosa
João de Barro grande Ernesto Nazareth
Com Jacob do Bandolim tudo dá pé
Pixinguinha trazendo Flor Amorosa
Grande Chico tanta coisa é preciosa
Desde A Banda e aí vem muito mais
Com Toquinho e Vinícius de Moraes
Radamés com Hermeto é arretado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(3)
Com Sivuca na sanfona vou ficando
Dominguinhos e também Alceu Valença
Com Renato seu Teixeira que bem pensa
Almir Sater na viola dedilhando
Sérgio Reis e Inezita vou louvando
Som da terra de trinados tão rurais
Pena Branca Xavantinho são vestais
Seu Zé Côco vai feliz no ponteado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(4)
Com Fafá de Belém eu me encanto
Com Gal Costa eu viajo ao paraíso
Elizeth fez meu ser perder o piso
Com a Elba meu Nordeste ouve o canto
Clementina negra dama nos deu tanto
Grande Elis entre nós cantou demais
Clara Nunes que louvou seus orixás
Todas elas na ribalta do tablado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(5)
Tom Jobim João Gilberto Carlos Lyra
Menescal todos pais da bossa nova
Ivan Lins ao piano é tanta trova
Vejo Milton Nascimento assim na mira
Som mineiro que no céu só nos atira
Com Vandré lembrando dos festivais
Gonzaguinha lá no céu descansa em paz
Altamiro toca um choro bem criado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(6)
Da Bahia vem o Gil e o Caetano
Vem Pepeu Armandinho e vem Caymi
Vem Bethânia vem Tom Zé e todo time
Vem Raul bom roqueiro e veterano
Vem Moraes o Moreira neste plano
Vem a Baby do Brasil que o belo faz
Vem Carlinhos negro Brown que nos apraz
Vem o samba de raiz todo bailado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(7)
Lá do Rio veio Rafael Rabelo
Bem a Beth e o Paulinho da Viola
Vem Aldir um poeta é show de bola
Vem Hermínio cabra bom com tanto zelo
Vem Cartola festejar eu vou fazê-lo
João Nogueira grandes sambas como tais
Esses dons esses sons celestiais
O chorinho que no Rio foi gestado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(8)
O Martinho lá da Vila é Pernambuco
Nordestino que depois virou sambista
O da Silva foi Moreira em mesma lista
Vem da terra que nasceu Joaquim Nabuco
Vem Geraldo Azevedo não retruco
Vem Gonzaga sanfoneiro bem atrás
Vem Lenine que talento esse rapaz
Vem Alceu que é muito festejado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(9)
Vem o Fagner lá do grande Ceará
Ednardo vem Nonato seu Luiz
Paraíba Zé Ramalho é da raiz
Chico César vem assim mesmo lugar
Alagoas Djavan vem festejar
Borghetinho lá do sul tantos piás
Como Kleiton e Kledir tão laborais
Os sulista do Rio Grande aloprado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais
(10)
O Brasil musical é grandioso
É baião samba xote e é chorinho
É catira bossa nova e som do pinho
Afoxé tem o frevo caloroso
Norte a sul um país melodioso
Tem os dons tem os sons e é capaz
O talento deste povo é contumaz
Toda hora algo novo inventado
Acordei neste mote fui tocado
Pra colher tantas rosas musicais

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