POR MARCELO MÁRIO DE MELO
Me engulha ver no Nordeste cordelistas passadistas da metrópole
insistirem na temática da roça e cordelistas da roça chamarem beija
flor de colibri. Me engulha a caricaturização do matuto nordestino. Me
engulham peças publicitárias e eventos no centro da cidade em que se
fala em “arraiá” e “capitá” e se chama mulher de “mulé”. Me engulha a
heroicização de Lampião e dos cangaceiros. Me engulha a santificação
do padre Cícero e de Frei Damião. Me engulha o discurso do “cabra da
peste”. Me engulha o frevo lamuriento e saudosista com binóculos de
anteontem. Me engulha reduzir a cultura nordestina à cultura do
açúcar. Me engulha a seita gilbertofreyriana. Me engulha o
regionalismo sem antenas. Me engulham as igrejinhas culturais e
vitalícias bafejadas por jetons. Me engulham as subigrejas
alternativas pejadas de gurus e séquitos.
Me engulha a terminologia conservadora em que os patriarcas
empoderados são “probos” e as rebeliões do passado são epigrafadas
como “irredentismo”. Me engulha a copidescagem do passado para retocar
biografias. Me engulha a arrogância do “cientista político” emitindo
opinião comum com aura de verdade absoluta. Me engulham o racismo
disfarçado o elitismo disfarçado o autoritarismo disfarçado. Me
engulha a arrogância de gerações de netos e avós. Me engulham o culto
e o desencanto ante o passado. Me engulham o falso moralismo político
por parte dos corruptos e a transigência com a corrupção apoiada na
denúncia do falso moralismo político.
Me engulha o charlatanismo intelectual de mudar a terminologia e
continuar em óticas e práticas nos velhos moldes. Me engulha o culto
do meio termo com ar de maturidade e equilíbrio. Me engulha a
fraseologia edulcorada e sem quinas. Me engulha o uso elástico e
difuso dos termos “povo” “cidadania” e “elite”. Me engulha o
esquecimento da identidade de classe quando se trata de cidadania. Me
engulha a deformação do sentido da palavra radical e a renúncia à
radicalidade no verbo e na vida. Me engulha a retirada de cena da
palavra revolução.
Me engulham as bandeiras de orgulho ante-sala da arrogância. Me
engulham utopias dogmas e mitos políticos. Me engulha uma sociedade
modelo pedras de dominó enfileiradas guardadas em caixinhas iguais
trens seguindo nos mesmos trilhos espaços fechados sem jardins
plurais.
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